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Série de textos produzidos por associados e disponibilizados pela associação.



Dr. André Maurício Monteiro

segundo semestre de 2013




Os objetivos principais deste texto são o de lançar ideias sobre a noção de enquadre no Brainspotting (BSP) e o de apresentar às/aos colegas uma proposta de manejo para finalização de sessões. Com frequência recebo queixas a respeito de dúvidas sobre como aprofundar mais ou menos uma sessão, seguidas de como fechar uma sessão de BSP, em especial quando a intervenção foi muito profunda e o cliente ainda se encontra em relativo estado alterado de consciência, meio submerso em temas marcantes que emergiram durante o processamento. A incerteza preponderante refere-se não somente à maneira como lidar com a intensidade do trabalho, mas como conjugar essa intensidade do processamento com aspectos práticos de respeito aos horários e à organização da agenda de consultório. A experiência com a finalização histórico-temporal me tem sido útil na consecução desse propósito.


Inicio com uma contextualização geral sobre diferentes estilos de interação entre terapeuta e cliente que parametrizam a prática do BSP. Em seguida apresento descrição de uma sessão de psicoterapia em que a finalização histórico-temporal foi empregada e concluo com considerações gerais sobre a abordagem. O propósito deste material é o de auxiliar colegas

que empregam o BSP regularmente em suas práticas psicoterápicas a conduzir um fechamento de sessão que seja ao mesmo tempo integrador em relação aos conteúdos trabalhados, e que simultaneamente ofereça ao cliente um senso de completude e de desfecho construtivo da intervenção.


Ao iniciar os trabalhos de BSP, padecemos de certa ansiedade diante do excesso de opções quanto a quais técnicas adotar. Para além de qual técnica específica que podemos escolher, falta ainda decidir qual a intensidade de intervenção: um ritmo com mais ou menos interação entre terapeuta e cliente. Uma das diretrizes principais que norteia a montagem (setting) da situação da díade terapêutica deve ser observada, ou seja: os indícios que nos auxiliam a determinar o ritmo da intervenção referem-se à importância de o terapeuta buscar ativamente o estabelecimento de uma sintonia com clientes, de modo que essa conexão auxilie terapeutas na determinação de um enquadre mais estreito ou mais amplo que deverá coordenar o andamento do processamento.


A caracterização da amplitude ideal do enquadre na relação terapeutapaciente soa um pouco frouxa, e por vezes promove certa confusão nos terapeutas mais iniciantes nesta abordagem psicoterapêutica. Deve-se conversar mais durante o BSP ou ficar mais em silêncio e deixar o cliente processar por conta própria? O que apresento em seguida é de forma alguma uma fórmula exaustiva, mas sugere alguns parâmetros que podem auxiliar terapeutas a estruturar o grau de envolvimento e apoio que desejam estabelecer com seus clientes durante o processamento.


Para nos auxiliar nesse processo de escolha, recorro aos ensinamentos derivados do trabalho de Edward John Mostyn Bowlby (1907-1990), sobre estilos vinculares, ou estilos de apego. Vale lembrar que o apego pode ser classificado em geral como subdividido entre apego seguro ou inseguro.


No apego seguro, a criança aprende que a constância e a previsibilidade da interação parental a permite ter o vínculo emocional temporariamente rompido, porque gradativamente desenvolve dentro de si a certeza de que esse vínculo será reparado. Essa certeza interior garante que momentos de separação não sejam vivenciados como abandono. Ao crescer, esse adulto consegue estabelecer relacionamentos semelhantes: ao mesmo tempo de aproximação, intimidade e de autonomia, conseguindo uma entrega emocional no envolvimento, mas se necessário vivenciar um bem-estar em momentos de isolamento.


No apego inseguro, contudo, essa certeza de que o vínculo rompido se restaura não se solidifica na interação entre criança e cuidador. A interação da criança com o cuidador é marcada por interações mais imprevisíveis, por parte do cuidador. A criança aprende rapidamente que suas necessidades emergentes podem não ser atendidas de modo adequado. Às vezes o cuidador age de modo exagerado, sufocando a criança com excesso de cuidado, mas em outros mostra-se indisponível, ou ainda alterna aleatoriamente entre um e outro, o que no médio prazo significa para a criança um risco a sua sobrevivência pessoal. Diante desse risco a criança pode reagir de modo evitativo ou resistente/conflitivo.


Nos casos de apego inseguro evitativo a criança tem necessidades como qualquer um de nós, mas aprende a não reconhecê-las, e menos ainda a demandar que sejam atendidas. Dessa maneira, se a criança consegue se convencer que não tem necessidades, não assume o risco de se sentir frustrada por não conseguir supri-las. Ao crescer, esse adulto tende a se mostrar menos envolvido em relacionamentos, de modo a não correr riscos de rejeição ou depressão em caso de abandono.


Já no apego inseguro conflitivo-resistente, a criança entra em estado de desregulação afetiva e não consegue se tranquilizar com atividades de mudança de estado, ou com a presença do cuidador. O retorno da mãe após período de separação não é suficiente para promover regulação emocional. Quando essa criança cresce, o adulto se torna constantemente preocupado com seus relacionamentos, sempre sofrendo os riscos de se desregular. Precisa de se sentir tranquilizado sempre que possível.


Diante dessa pincelada nos conceitos de diferentes estilos de apego em crianças e a descrição de alguns desdobramentos possíveis nos adultos que viveram essas interações com seus cuidadores, como entender o impacto desses estilos na forma de estruturação do enquadre? Mais ainda, como conciliar essa informação com um dos princípios que David Grand nos ensina: uma atitude de não-saber sobre o que acontece com os clientes, de desapego em relação a suposições e pré-conceitos? Bem, nada impede que o fato de termos acesso a mais dados em fase de levantamento de história clínica do cliente nos permita fazer melhores escolhas informadas. Não precisamos ignorar a intuição que se organiza diante de informações não-verbais da interação terapeuta-cliente, mas uma referência de estilos de apego bowlbiano ao menos nos provê com um mapa inicial, caso nos sintamos muito perdidos. Sem dúvida, o mapa não é sinônimo do território, mas sugere caminhos.


Ao pensar em termos de estilos de apego que nossos clientes devem ter vivenciado em suas respectivas infâncias, bem como as correlações desses estilos com nosso processo de tomada de decisão quanto ao tipo de enquadre a ser empregado no Brainspotting:

No caso de adequação de um enquadre mais estreito, com mais intervenções do terapeuta e menos intervalos de silêncio, o cliente deixa transparecer na interação inicial mais necessidades de apoio e suporte. Em termos gerais, uma fragilidade emocional mais intensa se manifesta pelo relato mais detalhado e emotivo, bem como a demonstração de sentimentos de desamparo e mais dificuldade por parte do cliente de regular as próprias emoções. Diante desse formato de apresentação da queixa, o terapeuta talvez devesse responder com uma conduta mais ativa e interativa, caracterizada por perguntas mais frequentes, pedidos específicos de informação e intervalos menores entre uma fala e outra, o que ao menos hipoteticamente transmitiria para o cliente uma impressão de presença próxima e regularidade na checagem dos níveis de ativação, consoante os princípios de constância e previsibilidade da instauração de vínculo.


Esse cliente reage de modo mais assemelhado às crianças que viveram um tipo de apego mais tipo conflitivo-resistente, com a necessidade de regulação de afetos de fora para dentro, do terapeuta para o cliente, o que demanda presença mais constante e intensa, uma presença que reconheça a fragilidade nas habilidades de auto regulação. Talvez um bom ponto de partida para esses clientes fosse uma abordagem mais pautada nos recursos, do que em pontos de ativação. Esses clientes em geral correspondem no EMDR ao tipo hiper-responsivo.


Em outras situações, pode ser que o cliente não apresente tanta demanda de atenção e cuidado por parte do terapeuta. Quando o cliente demonstra menos necessidade de um acompanhamento pari passu, ao tomar iniciativas que sugerem mais independência e maior capacidade de tolerar ambiguidade do silêncio do terapeuta, o enquadre se estrutura de modo mais amplo, com menos necessidade de intervenção. Em vez de interação mais frequente, o terapeuta pode assumir atitude de certa contemplação do processo.


Esses casos refletem possibilidade de estruturar enquadre mais amplo e correspondem a certo incentivo nas entrelinhas por parte do terapeuta, para que o cliente exercite mais suas habilidades de autonomia. Esse jeito mais laissez-faire de conduzir o BSP corresponde a uma reiteração, ao reconhecimento de um estilo de apego mais estruturado e de confiança mais solidificada entre cliente e terapeuta. Essa atitude menos interventiva de modo algum significa distanciamento emocional ou indiferença pelo sofrimento do cliente. Trata-se sim de uma forma mais sintonizada de apoio, de participação não-verbal, que é claramente percebida pelo cliente como a manifestação de respeito e de tolerância com o tempo demandado pelo cliente para levar a termo seu processamento. Essa é a melhor forma de respeito às necessidades emergentes do cliente. Esse cliente corresponde no EMDR ao tipo que apresenta um reprocessamento espontâneo, no qual o terapeuta pode sair mais da frente e deixar que o cérebro do cliente siga seu caminho, sem a exigência de muita intervenção. Talvez no BSP seja esse cliente o mais indicado para intervenção com modelo típico de ativação.


Haveria ainda um tipo de certo modo mais desafiador, correspondente ao cliente com apego evitativo. Nesse caso o cliente enganosamente apresenta uma fachada de autonomia, mas com sentimentos profundos e inconscientes de demanda por cuidado, com muitas necessidades não reconhecidas, e por isso mesmo não atendidas. Esse cliente corresponderia a um estilo mais hiporesponsivo, com dificuldade de entrega e de recebimento de apoio. Talvez o melhor caminho fosse o estabelecimento de um tipo de enquadre mais híbrido, ou seja: um pouco mais aberto no início, de modo a permitir espaço para a pessoa se localizar melhor depois que conseguisse acesso mais direto à ativação de seus conteúdos o terapeuta fechar um pouco mais o enquadre e acompanhar mais de perto as mudanças que ocorrerem ao longo do reprocessamento, sem deixar a pessoa solta por muito tempo sem algum tipo de interação. Quem sabe uma boa forma de conduzir o BSP nesses casos também fosse na mesclagem de processos de ativação e recurso, como o estabelecimento de um ponto de ativação, mas ao mesmo tempo acompanhar o trabalho com um recurso corporal, de modo a dosar e modular um pouco mais o nível de mobilização emocional do cliente.


Como podemos concluir, vários fatores se encontram em jogo no estabelecimento da verdadeira arte de escolher mais ou menos intervenção do enquadre terapêutico durante o processamento com BSP. Por vezes, o nível de emoção do cliente oferece mais pistas para hemisfério direito do terapeuta (não-verbal, corporal, intuitivo e globalizado) quanto aos níveis de carência de suporte. Em outras situações, o cliente fala mais e busca ativamente contato, o que denuncia necessidades de ser assegurado de que terapeuta está presente e se importa (mais interativos com hemisfério esquerdo – linguístico e lógico, racional).


No entanto, outros clientes não recorrem bem às palavras ou a emoções; preferem mais silêncio na interação, mais espaço para se concentrarem no que ocorre dentro deles e sentem falta de introspecção. Para essas pessoas, perguntas investigativas do terapeuta provocam desconforto/irritação, por conta da quebra de oportunidades de mais reflexão e atenção plena, apesar de possivelmente denunciarem estilo de apego mais evitativo, sem muito pedido de ajuda.


Seja por um caminho de mais ou menos coparticipação no processamento do cliente, o terapeuta se depara com o desafio de organizar uma distância ótima, pautada por um contínuo de mais intervenção, ou por certo distanciamento e respeito ao exercício de autonomia. Quanto mais intervenção houver, com formulação de perguntas e intercâmbio de informação nessa díade terapeuta-cliente, mais cortical deve ser o processamento, pois mais recursos linguísticos serão recrutados.


Já uma atitude de mais silêncio, iniciada pelo terapeuta, evoca a ativação de regiões subcorticais, que por natureza são primitivas e pouco interativas, ou em certo sentido são interativas em um âmbito corporal e emotivo, onde palavras deixam de ter importância prioritária e outros canais de comunicação entram em jogo.


David Grand tem destacado a importância de privilegiar o início do processamento com mais recurso e menos ativação, passando-se gradativamente para o inverso, bem como o privilégio do processamento subcortical sobre o cortical, com o entendimento de que esse tipo de processamento seria mais profundo e abrangente do que aquelas outras formas de intervenção nas quais o cliente descreve em demasia o que ocorre. Portanto, o processamento subcortical corresponderia à criação de um contexto no qual as mudanças cerebrais conquistariam a superação das dificuldades. Logo, mesmo se durante o processamento a pessoa relata não entender exatamente o que ocorre, ou tem a impressão de não perceber grandes mudanças no pensamento, entendemos que a mobilização e o processamento ocorrem mais em uma dimensão corporal, emocional ou de alguma maneira sem palavras adequadas para expressar o que ocorre. Esses relatos ainda assim refletiriam mudanças mais profundas, preferíveis a outros pacientes que nos inundam com relatos prolixos.


Todas essas polaridades ativação/recurso, hipo e hiper-responsividade, processamento cortical/subcortical, enquadre aberto/fechado, além dos diversos estilos de apego compõem a enorme tarefa e desafio de montagem e execução da fase principal do BSP, de modo que a intervenção seja bem equacionada e o terapeuta se perceba com mais destreza na sintonia com os processos de ativação e recrutamento de recursos do cliente, conforme a exigência do caso.


Por outro lado, curioso pensar o quanto as estratégias de sintonização com os clientes, seguido de fechamento da sessão demandam de nós a habilidade a ser desenvolvida de ativar mais nosso hemisfério direito, com encorajamento da manifestação de intuição e estabelecimento de um jogo interativo não-verbal com o cliente. Simultaneamente, ficamos em alerta com tarefas típicas de hemisfério esquerdo, atento a detalhes como horário, finalização de sessão e o que dizer para otimizar a conclusão do processamento durante o encontro terapêutico. Ser terapeuta de BSP pode ser um bom caminho para exigir não somente dos clientes, mas dos cérebros dos terapeutas a concatenar estímulos provenientes dos dois hemisférios!


Ao se conquistar certa maestria desses componentes do BSP, deparamse ainda vários colegas terapeutas com relativa incerteza quanto à finalização do BSP, não importando se o enquadre foi mais amplo ou mais fechado, se o processamento ocorreu mais no nível cortical ou subcortical. Depois de efetuar o procedimento zero de limão espremido, como fechar a sessão?


Uma opção mais direta consiste em pedir para o cliente fechar os olhos, largar o ponto de observação e deixar os olhos vaguearem por dentro do corpo e da mente, até a pessoa se sinta de algum modo finalizada em seu processo, mais centrada no presente.


Outro modo de finalizar pode ser posto em ação, ao se solicitar que o cliente feche os olhos e faça um percurso mental do que foi o início do processamento no início da sessão, qual foi o trajeto percorrido, até uma chegada ao aqui e agora, com eventual destaque para alguma lição aprendida no caminho, uma mensagem para se levar para casa, ou algo parecido. Essa revisão ajuda hemisfério esquerdo a se reconectar com a organização de um recurso autobiográfico e a mobilizar maior integração inter-hemisférica. Apesar de o BSP supostamente alcançar regiões cerebrais mais profundas, pautadas por reflexos, a transição para o contexto social requer um retorno ao funcionamento cortical básico.


No relato que se segue apresento outra forma de finalização que ocorreu de modo espontâneo durante um processamento multifocal, em que certos pontos de observação atinentes a momentos distintos de 1. vida adulta atual, 2. conflitos afetivos adolescentes e 3. vivência de criança foram tratados de modo paralelo e simultâneo.


Desejo destacar o acompanhamento das modificações no processamento da cliente em enquadre amplo, com processamento mais autônomo. A cliente se queixou inicialmente de o quanto ficara paralisada diante de certas insinuações que uma convidada fizera em relação ao marido da cliente, durante evento familiar festivo. O marido até que havia se “comportado” bem, de forma a não incentivar os avanços da moça em questão, mas o ambiente se tornara tenso e a cliente repentinamente entrou em contato com um ciúme intenso e inesperado, acompanhado por auto avaliação de menos valia e insegurança.


Quando perguntada sobre outros eventos no passado relacionados a essa temática, se já havia sentido algo semelhante na infância, relatou ter se conectado com lembranças do primeiro namorado de sua vida. Ele a traía compulsivamente, mas ela não conseguia se desvencilhar dessa relação, caracterizada por ela como doentia, mesmo com a consciência de que ele não seria uma boa pessoa para ela, de que não era “a pessoa” que ela buscava para passarem a vida juntos.


Ainda assim, ficaram nesse vai-e-vem de rompimentos e reatamentos por alguns anos, antes que ela conseguisse finalmente por um ponto final e definitivo na relação. Reconheceu que ao relacionamento subjazia um temor de ficar para sempre sozinha, solitária, o que a levava a se agarrar ao namorado como uma boia salva-vidas, encontrada no meio de um oceano de indefinições afetivas e de autoestima prejudicada. Para piorar a situação, sofria com uma formação familiar e escolar na qual havia sido moldada, treinada com muita repressão para vir a se comportar como uma boa moça, uma moça religiosa e decente perante a sociedade, assumindo os devidos cuidados para não ficar mal falada na cidade do interior onde vivia. Como nosso tempo de sessão estava prestes a se findar, solicitei que durante a semana observasse um pouco mais o passado e o que mais se relacionava a esses sentimentos evocados na festa.


Na sessão seguinte chegou bastante mobilizada, com muitas lembranças anteriormente esquecidas e alguns insights quanto ao modo de se relacionar afetivamente com homens. Observou o quanto na adolescência se sentia solitária e imune aos sinais de interesse afetivo/sexual dos meninos. Volta e meia recebia elogios, bilhetes com pedidos de número de telefone quando em ambiente público, e a ela chegavam flores enviadas por fãs anônimos: um sucesso! Mas nada disso a convencia de ser uma pessoa querida ou ao menos desejada.


Chegou mesmo a trabalhar como manequim no fim da adolescência, mas nenhum desses sinais de mobilização emocional/estética que ela provocava nos outros era registrado como representativos de algum tipo de interesse que eles tinham por ela, nem de deter algum tipo de valor pessoal. Havia passado por uma formação religiosa restritiva e sentia-se não merecedora de atenção. Essa atitude dissociativa em relação à atenção dos homens de certo modo se combinava com a educação religiosa recebida, pois apesar das boas notas, isso nunca deveria ser vivenciado com orgulho ou vaidade.


Reconheceu que a reação na festa recente nada tinha a ver com o marido. Por meio de janela interna, localizamos um ponto à direita na altura dos olhos, como ponto de ativação, por onde ela quis iniciar o BSP. Já outro ponto na altura dos olhos, mas diante de si foi qualificado como algo que despertava sensações mais presentes, atuais, e foi registrado como um ponto de recurso, com certo alívio de ativação. À esquerda, mais abaixo do campo visual, havia a evocação de algo mais primitivo, uma emoção associada a vivências mais infantis. As partes do corpo mais ativadas (SUDS = 9) eram o peito e o pescoço, principalmente a nuca.


Esse relato inicial espontâneo que associou certos pontos a momentos históricos de infância, adolescência e vida adulta me fez mais tarde pensar sobre a possibilidade de tentarmos associar não somente um ponto a conscientização de mais ou menos ativação ou recurso emocional e corporal, mas de sondar com clientes a quais momentos históricos esses pontos se referem. Ainda não procurei adotar essa estratégia com muitos clientes, mas me interrogo sobre a possibilidade de diferentes brainspots sinalizarem não apenas a polaridade ativação/recurso em relação a certo tema traumático, mas que determinado tema traumático promove no cérebro a construção de ângulos pontos que representam diversos momentos históricos desse trauma em uma cadeia de memória autobiográfica. Os diferentes ângulos estruturariam uma cadeia de desenvolvimento que em relação a certo tema traumático organiza ângulos de infância, adolescência e vida adulta atual, um trajeto que pode ser percorrido de modo mais abrangente e completo no trajeto de processamento, em vez de somente o binômio ativação-recurso.


Essa possibilidade de intervenção faz mais sentido quando pensamos em um processamento multifocal, com estabelecimento de vários alvos simultâneos que refletem a abordagem de toda a cadeia associativa relacionada ao tema traumático, em vez da busca por alvo singular na cadeia associativa, como o que ocorre quando tentamos encontrar um evento-chave singular, na abordagem de psicoterapia do EMDR.


O interesse por uma abordagem que privilegia a multifocalidade, descrito em outro texto a partir de intervenção de David Grand no Nível 3 em Brasília/2013 abre portas para pensarmos em algum tipo de ordenamento espacial dos pontos que reflita esse arranjo temporal-histórico de certo tema, de modo que os pontos não somente refletem mais ou menos ativação, mas diferentes níveis de SUDS para o reflexo autobiográficos relacionados ao tema em reprocessamento, destacados de outros, com menos ativação. Se buscamos apenas ápice de ativação, negligenciamos outros ângulos correspondentes a momentos intermediários da vivência traumática, ou momentos traumáticos intermediários que talvez tenham relevância para a finalização mais abrangente do BSP em uma perspectiva de terapia processual, de mais médio/longo prazos com clientes mais complexos.


Voltando ao caso e atendendo à solicitação da cliente, começamos pelo ângulo de mais mobilização de conteúdos relativos principalmente a vivências de adolescência com o primeiro namorado, que na época se envolvia com outras moças enquanto namorava a cliente, deixando-a vulnerável a opiniões da sociedade local. A cliente relatou muita sensação física enquanto se concentrava nesse tema. O enquadre estruturado foi bem amplo, com pouca necessidade de intervenção durante o processo – trata-se de cliente com mais experiência clínica e boa capacidade de introspecção e insight.


Depois de algum tempo ela espontaneamente solicitou a mudança da vareta para o lado esquerdo, onde estavam impressões mais associadas à infância. O curioso foi uma lembrança específica que emergiu nesse momento: ela lia uma revista do tipo telenovela. O pai a flagrou nessa leitura imprópria para crianças e disse (ela conseguia durante a sessão ouvi-lo dizer as palavras) cujo conteúdo aproximado foi: “Você não deve ficar lendo essas coisas, porque a vida não é assim. As coisas só dão certo nas novelas, mas não na vida real. Melhor você não se iludir”. Recordou-se de como essas palavras a haviam marcado a vida toda, construindo um receio de nutrir grandes expectativas e se decepcionar.


Após algum tempo de silêncio, e de se conscientizar o quanto esse conselho bem-intencionado havia estruturado sua vida, disse em tom conclusivo: “Mas no final das contas, foi ele quem comprou aquela revista...”. Em seguida, conseguiu se dar conta de que às vezes a vida pode dar certo na própria vida, não apenas na revista!


Sugeri que em seguida tentássemos focalizar o presente, que naquele momento já era o ponto de menos ativação. Como era de se esperar, houve menos ativação ainda. Um senso de completude e de mais inteireza emergiu espontaneamente. Agora havia um sentido geral de mais merecimento, e de que talvez a cliente até pudesse sentir orgulho de algumas conquistas pessoais e profissionais, sem que isso significasse cometer pecado. Não estavam mais presentes as ameaças de abandono e solidão. A lembrança do incidente na festa não despertava mais desconforto, não parecia mais ser relevante.


Para a finalização do BSP movimentei lentamente a ponteira desde a vida adulta, passei pelo ponto de adolescência e finalizei no ponto de infância. Em seguida fiz o trajeto contrário, da infância até a vida adulta, o que foi experienciado pela cliente como uma finalização integradora, um fechamento do trajeto histórico que havia vivenciado em relação à queixa inicial.


Espero com esse relato ter esclarecido melhor algumas das considerações anteriores e oferecer às colegas encorajamento para compartilharmos vivências de BSP, bem como avançarmos em rotas de elaboração teórica.



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BSP com Finalização Histórica
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CÍNTIA FUZIKAWA

Departamento de Saúde Mental, Faculdade de Medicina,

Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.



Resumo

O brainspotting é uma nova abordagem psicoterápica utilizada no tratamento de vivências traumáticas. Enfatiza a sintonia dual: a sintonia relacional entre terapeuta e cliente e a sintonia neurobiológica, representada pela manutenção do olhar do cliente direcionado a um ponto no campo visual, chamado brainspot, que tem ressonância com a ativação sentida ao pensar no trauma. Esses dois fatores contribuiriam para permitir que a resposta de orientação, que ficou truncada na ocasião do trauma, fosse completada, chegando a uma resolução profunda. Este artigo, primeiro trabalho brasileiro sobre o tema, visa apresentar o brainspotting, descrevendo sua descoberta, posterior desenvolvimento, princípios e utilização clínica, além de hipóteses neurobiológicas para explicar sua ação e um estudo preliminar para avaliar sua eficácia.

Palavras-chave: Psicoterapia, transtorno de estresse pós-traumático, neurobiologia.


Abstract

Brainspotting is a new psychotherapeutic approach for the treatment of traumatic experiences. It is based on a dual attunement frame: the relational attunement between therapist and client, and the neurobiological attunement, represented by fixation of the client’s look at a given spot in the visual field, called brainspot, which resonates with the activation felt while thinking about the trauma. Both elements would contribute to the completion of the orienting response that remained truncated when the trauma occurred, finally leading to a deep resolution. This is the first paper published in Brazil on the topic. We will describe the brainspotting approach with a focus on its discovery, developments, underlying concepts, and clinical use. We will also present the neurobiological hypotheses on how it works and describe a preliminary study to evaluate its efficacy.

Keywords: Psychotherapy, post-traumatic stress disorder, neurobiology.


Introdução

Brainspotting é uma abordagem psicoterápica que se desenvolveu a partir da observação de que as emoções e sensações físicas sentidas ao se relatar um evento traumático têm ressonância com um ponto no campo visual1. A palavra é a junção dos termos em inglês cérebro (brain) e ponto ou local (spot). Há cerca de 8.000 terapeutas com formação em brainspotting no mundo, sendo 400 no Brasil. Este artigo, o primeiro trabalho brasileiro sobre o tema, visa apresentar o brainspotting, descrevendo sua descoberta, posterior desenvolvimento, princípios e utilização clínica, além de hipóteses neurobiológicas para explicar sua ação e um estudo clínico preliminar realizado para avaliar sua eficácia.


Descoberta, descrIção e desenvolvimento


O brainspotting foi descoberto por David Grand, terapeuta de Nova Iorque, em 20032. Como várias descobertas, ocorreu a partir da observação de um evento inesperado. O observador, no caso, foi um terapeuta que contava com mais de 20 anos de experiência clínica na época, com formação psicanalítica e em duas abordagens psicoterápicas usadas no tratamento do trauma: o eye movement desensitization and reprocessing (EMDR) e a experiência somática. Tinha ampla experiência no tratamento de vítimas de trauma, tendo atendido socorristas, sobreviventes e familiares de vítimas do atentado de 11 de setembro de 2001.

Grand havia desenvolvido uma adaptação do EMDR, chamada EMDR de fluxo natural. Nessa abordagem, solicitase ao cliente que pense na imagem do evento traumático que se quer trabalhar, associada à emoção, sensação física e crença negativa despertada pela lembrança, enquanto acompanha o movimento dos dedos do terapeuta, que traça muito lentamente uma linha horizontal imaginária ao nível dos olhos do cliente. Em 2003, Grand estava usando o EMDR de fluxo natural com uma cliente que era patinadora do gelo. Trabalhavam na dificuldade que ela tinha de realizar um salto específico. Enquanto ela acompanhava o movimento de seus dedos, o terapeuta notou que, em determinado ponto, os olhos “tremeram” e se fixaram, como que “grudados” àquele ponto. Intuitivamente, ele manteve os dedos nesse ponto. Durante os 10 minutos seguintes, surgiram relatos de eventos traumáticos até então não mencionados, e eventos que já haviam sido trabalhados ressurgiram e foram trabalhados de maneira mais aprofundada. Isso chamou a atenção dele, ainda mais que já vinha trabalhando com essa cliente havia cerca de 1 ano, e haviam processado muitos traumas, tanto ligados ao esporte quanto fora dele – embora permanecesse a dificuldade com esse salto específico, que não é considerado particularmente difícil para os profissionais. O que tornou esse evento mais marcante foi que, na manhã seguinte, ela telefonou e lhe contou, muito feliz, que havia conseguido realizar o salto diversas vezes durante o treino (e nunca mais teve problemas para realizá-lo).

Ele passou a fazer o mesmo com outros clientes: quando observava um movimento ocular que chamava sua atenção, mantinha os dedos na posição em que o movimento ocorrera. Percebeu que, com muitos clientes, ocorria fenômeno semelhante ao que observara no caso da patinadora do gelo: o processo se aprofundava, surgiam novas associações e lembranças. Como vários dos seus clientes eram terapeutas, eles começaram a perguntar o que estava fazendo. Ele explicava e eles usavam o mesmo procedimento com os clientes deles. Grand começou a receber feedback de que seus clientes também estavam obtendo bons resultados. Ele chamou essa maneira de localizar pontos (que passariam a ser chamados de brainspots) de método da janela externa; esta ocorria através da observação de movimentos involuntários do cliente, enquanto acompanhava o traçado lento de uma linha imaginária horizontal ao nível de seus olhos, estando mobilizado quanto à questão que desejava trabalhar. Alguns exemplos de movimentos involuntários são: tremores dos olhos, piscamento, mudança de expressão facial, movimentos de lábios ou língua, deglutição, suspiro.

À medida que Grand tentava localizar pontos pelo método da janela externa, alguns clientes começaram a guiá-lo, dizendo para qual ponto estavam olhando, no qual sentiam maior mobilização em relação à questão trabalhada, etc. Por exemplo, diziam “é um pouco mais para a direita” ou “você acabou de passar por ele”. Então se constatou que o cliente pode perceber internamente uma maior ou menor ativação de acordo com o local para onde olha. Esse outro método de localizar brainspots foi chamado de janela interna.

Finalmente, a terceira maneira de localizar um brainspot é através da observação de locais para onde o cliente olha espontaneamente ao falar de uma questão. Há clientes que olham fixamente para um ponto no espaço enquanto relatam ou pensam naquilo que os incomoda. Pontos localizados dessa forma são chamados de pontos de mirada (gazespots).

Descrevendo de maneira bastante simplificada o procedimento básico usado no brainspotting (ver a seção “Princípios”, a seguir), pede-se que o cliente pense naquilo que o está incomodando, na questão que gostaria de trabalhar. Em seguida, pergunta-se a ele se está se sentindo “ativado”. Ativação é o termo que foi escolhido para nomear o que é percebido internamente pelo cliente, seja emocional ou fisicamente, ao pensar na questão. É um termo mais genérico e abrangente do que perturbação, sofrimento ou incômodo. Então, pede-se que a ativação seja quantificada numa escala de 0 a 10, onde 0 significa nenhuma ativação e 10 é o máximo de ativação que a pessoa consegue conceber (Subjective Units of Distress Scale [SUDS]), e, em seguida, pergunta-se onde a pessoa sente a ativação no corpo. Com o cliente ativado em torno da questão, localiza-se um brainspot por um dos métodos descritos anteriormente, e pede-se que o cliente simplesmente olhe para o ponto e observe o que acontece, procurando não criticar ou interferir no processo. Realiza-se, então, o processamento da questão até que o valor na SUDS chegue a 0.


PrIncípios


A seguir são descritos alguns princípios que fundamentam e orientam o trabalho com brainspotting.


Implicações de conhecimentos da neurociência

No brainspotting, há ênfase para que o terapeuta leve em consideração as implicações de conhecimentos da neurociência no seu trabalho. O cérebro tem em média 10 bilhões de neurônios e 1 quadrilhão de sinapses4; a maior parte do seu funcionamento ocorre fora da consciência e do controle voluntário, e as inter-relações entre o cérebro e o restante do corpo são complexas e não totalmente conhecidas. Por isso, é impossível saber, momento a momento, o que está se passando dentro desse sofisticado sistema. Sabe-se da capacidade neuroplástica do cérebro5, e pensa-se que o brainspotting, assim como outras terapias, auxiliaria a colocar em funcionamento mecanismos intrínsecos direcionados para a cura, mesmo que ainda não se saiba como isso ocorre. Ou seja, não é a atuação do terapeuta ou a abordagem que causa diretamente a mudança, e sim os mecanismos intrínsecos cujo funcionamento seria facilitado ou otimizado com a atuação do terapeuta e da abordagem. Da mesma forma, não é possível, nem necessário para que haja melhora, que tudo o que ocorre numa sessão seja “explicável”. Portanto, é importante que o terapeuta e o cliente mantenham em mente que o que se busca é a melhora, mesmo que não se consiga explicar por que ela ocorreu.


A moldura da sintonia dual: neurobiológica e relacional

No brainspotting, há dois aspectos que funcionam como a moldura ou enquadre da abordagem, que direcionam o trabalho, e aos quais o terapeuta deve estar constantemente atento: a sintonia neurobiológica e a sintonia relacional. A sintonia neurobiológica é dada pela utilização do olhar em direção ao brainspot durante o processamento. O brainspot representa o ponto de maior ressonância com a ativação que o cliente sente, ou seja, há uma sintonia entre o que o cliente sente e esse ponto. Uma vez que o ponto é localizado, é como se o olhar do cliente em direção a ele, durante o processamento, fosse uma ancoragem neurobiológica, favorecendo um estado ótimo para que o processamento ocorra.

A sintonia relacional se refere à sintonia na relação terapeutacliente. Há grande cuidado com a comunicação verbal e não verbal, atenção ao que o cliente diz, às palavras que usa, à sequência das falas, às reações físicas que as acompanham; recebe-se o que o cliente diz, sem fazer pressuposições. Da mesma maneira, há um cuidado na maneira de estruturar perguntas ou fazer colocações. Procura-se criar um ambiente de segurança, confiança e respeito pelas vivências do cliente e pelas demandas que traz. Uma comparação que é feita com a sintonia no brainspotting é com um cometa: o cliente lidera o processo, como a cabeça do cometa, e o terapeuta acompanha atentamente, procurando se manter na cauda do cometa. Portanto, localizar e usar um brainspot nunca deve ser um processo mecânico, mas sempre estar no contexto da relação terapeuta-cliente.

Uma das características marcantes do brainspotting é a ênfase nesses dois aspectos, combinando os benefícios terapêuticos de uma boa relação terapeuta-cliente, incluindo a comunicação verbal, com os benefícios da possibilidade de acessar áreas do cérebro que têm relação com aspectos não verbais associados às vivências do cliente, como sensações físicas (sobre isso, ver item “Importância das sensações corporais”, mais a seguir).


Presença sem pressuposições ou julgamentos

Considerando o que já foi mencionado sobre a complexidade do nosso organismo e a consequente impossibilidade de explicar tudo o que observamos no trabalho com o cliente, e também considerando o aspecto essencial da sintonia relacional, o terapeuta deve observar o processo de maneira atenta e presente, como num estado de mindfulness.

De maneira semelhante, pede-se ao cliente que observe o que se passa durante o processamento, procurando não criar expectativas, não julgar o que está acontecendo, simplesmente observar o que lhe acontece internamente. Ao se focar no brainspot, é como se o cliente estivesse num estado de mindfulness focado. Há evidências de que essa capacidade de auto-observação, enquanto se trabalha um evento traumático, seria importante para o processamento e a resolução do trauma.


Importância das sensações corporais

A importância dada às sensações corporais e à percepção interna do indivíduo fica clara na maneira como se localiza um brainspot pelo método da janela interna. Além disso, durante o processamento, as sensações físicas que o cliente relata podem ser usadas para acompanhar o processo. Por que é dada essa relevância às sensações corporais? O desenvolvimento do brainspotting foi influenciado por Levine & Frederick e por Scaer, que mostram que as vivências traumáticas ficam registradas no corpo; muitas vezes, essa permanência está relacionada a sintomas. Assim, pedir ao cliente que perceba as sensações físicas é como voltar o foco do processamento para o que pode ser uma manifestação do trauma, talvez o registro de componentes não verbais nas áreas subcorticais do cérebro (ver “Estudo clínico e hipóteses neurobiológicas”, mais a seguir).


Aplicação clínica


O brainspotting tem sido usado no tratamento psicoterápico de diversas situações. Frequentemente é usado no tratamento de eventos traumáticos – desde quadros de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) até eventos que foram marcantes e desagradáveis para o cliente, mesmo não acarretando TEPT. É comum verificar que existem vivências traumáticas subjacentes a queixas ou sintomas. Por exemplo, pode haver queixas de dificuldades relacionais atuais e, ao se trabalhar com o cliente, verificam-se associações com vivências anteriores marcantes que contribuíram para moldar a maneira como ele se relaciona e para formar sua autoimagem. Essas vivências podem, então, ser abordadas especificamente com o brainspotting. Elas podem ter ocorrido no início da vida, até mesmo no período pré-verbal. Não há memórias episódicas, factuais dessas vivências, porque o início da capacidade de formar esse tipo de memória ocorre em torno dos 2 anos de idade. Por outro lado, há memórias implícitas, de sensações físicas e emocionais referentes a esse período. Como o brainspotting tem ênfase no não verbal, nas sensações físicas, no corporal, e postula-se que consiga acessar mais especificamente estruturas subcorticais (ver “Estudo clínico e hipóteses neurobiológicas”, a seguir), ele conseguiria acessar e trabalhar vivências dessa época crucial para a estruturação do indivíduo.

Outra área onde o brainspotting tem sido aplicado é no aprimoramento da performance de profissionais como atletas9, atores, musicistas, dançarinos e cantores. Bloqueios na performance também estão frequentemente ligados a vivências traumáticas. O brainspotting permite não só tratar as vivências que contribuem para bloqueios, mas também ajudar na expansão da performance; ou seja, se pensarmos que os bloqueios prejudicam o desempenho de um atleta, por exemplo, a remoção dos mesmos “restauraria” o desempenho a um nível anterior; para além disso, o brainspotting tem sido utilizado no sentido de ampliar, aperfeiçoar e expandir a performance.


Estudo clínico e hipóteses neurobiológicas

Foi realizado um estudo aberto sobre o efeito do tratamento com brainspotting em 22 adultos com sintomas de TEPT. Foram aplicadas a Posttraumatic Diagnostic Scale (PDS), a Clinical Global Impressions (CGI) e a Hospital Anxiety and Depression Scale (HADS) antes do tratamento e após três sessões de brainspotting, além da SUDS antes da primeira sessão e após cada uma das três sessões. Houve redução significativa dos escores da PDS, HADS e SUDS, e cerca de 90% dos pacientes foram classificados na CGI como estando moderadamente ou muito melhores.

Corrigan & Grand apresentaram hipóteses para explicar a associação entre um evento traumático e um brainspot e de que maneira olhar para o brainspot, enquanto se está ativado em relação ao evento, contribuiria para o processamento e a resolução do trauma. Diante de um estímulo potencialmente ameaçador, haveria uma resposta de orientação, compreendendo as seguintes fases: excitação, suspensão de atividade, alerta sensorial, ajustes musculares, varredura, localização no espaço, identificação, avaliação, tomada de ação e reorganização. A resposta de orientação inicial envolve os colículos superiores, situados no mesencéfalo; essas estruturas recebem informações da retina, mas também de outras modalidades sensoriais, e estão direta ou indiretamente ligadas a diversas estruturas corticais e subcorticais. Quando ocorre uma resposta de orientação adaptativa, as fases citadas são completadas em seguida ao estímulo, até a fase de reorganização. No entanto, quando ocorre um alto nível de excitação devido a um estímulo potencialmente traumático, a resposta de orientação pode ficar truncada. Podem não se completar as fases em seguida ao estímulo, levando à não resolução e gerando reações desadaptativas diante de elementos que lembrem o trauma. Um brainspot seria, então, uma resposta de orientação oculomotora a uma vivência traumática que ficou “armazenada” devido à não resolução e integração das fases da resposta de orientação. Acessar esse ponto e manter o olhar direcionado para ele durante o tratamento da vivência traumática permitiria que a resposta de orientação se completasse. É como se o ponto correspondesse ou “marcasse” a resposta não completada, e olhar continuamente para ele durante o processamento fornecesse e mantivesse aberta uma porta de entrada para o trauma, pelo mesencéfalo, ou seja, em um nível sensorial, não verbal, não controlado conscientemente, para que a resposta – que envolve diversas estruturas cerebrais, inclusive corticais – se completasse. Uma descrição mais aprofundada das hipóteses neurobiológicas pode ser encontrada no artigo de Corrigan & Grand.

Conclusões


O brainspotting é uma nova e promissora abordagem psicoterápica que tem sido utilizada no tratamento do trauma. Enfatiza a sintonia relacional entre terapeuta e cliente e a sintonia neurobiológica, com a utilização do olhar direcionado a um brainspot durante o processamento do evento traumático. Esses fatores podem contribuir para que a resposta de orientação truncada na ocasião do trauma se complete de maneira integrada e profunda. São necessários mais estudos para comprovar sua eficácia e conhecer melhor seus mecanismos de ação.


Agradecimentos


A autora é grata a Cristiane Damaso, Diogo Lara, Luiz Cuschnir, Márcio Ueda, Patrícia Jacob e Patrícia Mattos pelo apoio e incentivo.

A autora informa não haver conflitos de interesse associados à publicação deste artigo.

Fontes de financiamento inexistentes.


Correspondência: Cíntia Fuzikawa, Departamento de Saúde Mental, Faculdade de Medicina da UFMG, Av. Prof. Alfredo Balena, 190/235, CEP 30130-100, Belo Horizonte,

MG. E-mail: cfuzikawa@ufmg.br



Referências

1.Corrigan F, Grand D. Brainspotting: recruiting the midbrain for accessing and healing sensorimotor memories of traumatic activation. Med Hypotheses. 2013;80:759-66.

2.Grand D. Brainspotting: the revolutionary new therapy for rapid and effective change. Boulder: Sounds True; 2013.

3.Wolpe J. Psychotherapy by reciprocal inhibition. Stanford: Stanford University Press; 1958.

4.Shepherd GM. The synaptic organization of the brain. New York: Oxford University Press; 2003.

5.Doidge N. The brain that changes itself: stories of personal triumph from the frontiers of brain science. New York: Viking Books; 2007.

6.Lanius RA, Bluhm RL, Frewen PA. How understanding the neurobiology of complex post-traumatic stress disorder can inform clinical practice: a social cognitive and affective neuroscience approach. Acta Psychiatr Scand. 2011;124:331-48.

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8.Scaer RC. The body bears the burden. Binghamton: Haworth; 2001.

9.ESPN Films. Fields of fear [Internet]. 2014 Sep 16 [cited 2014 Nov 29]. http://espn.go.com/video/ clip?id=11537464

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14.Ogden P, Minton K, Pain C. Trauma and the body: a sensorimotor approach to psychotherapy. New York:

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